Éverton de Almeida[1]
Cristiano Moreira[2]
As recentes medidas de isolamento
social, adotadas em várias partes do planeta para enfrentamento da pandemia de
Coronavírus (Covid-19), chegaram oficialmente às escolas Catarinenses no dia 17
de março, quando o Governador do Estado publicou o Decreto Nº509 no Diário
Oficial do Estado de Santa Catarina determinando a suspensão das aulas por um
período de trinta dias.
A primeira quinzena de suspensão
será compensada com as férias de julho. A partir do dia 06 de abril, o
calendário começou a girar novamente. Para tanto, a estratégia adotada pela
Secretaria de Estado da Educação (SED-SC) foi a de mobilizar, nos últimos dias,
a categoria de professores a participar de cursos de formação online, na
tentativa de estimular o uso de Tecnologias Digitais de Informação e
Comunicação (TDIC), em sua interface com o currículo, através das ferramentas
presentes na plataforma Gsuite for Education, da empresa Google.
A pandemia tem se tornado um terreno
muito fértil para as grandes empresas do mercado de tecnologia digital,
conhecidas como as cinco grandes do BigData (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft).
No contexto catarinense, no ano de 2015, a SED-SC firmou parceria com a
QiNetwork, empresa representante dos serviços da Google no Estado de SC.
Iniciado no ano de 2016 através de um piloto realizado em 36 escolas estaduais,
o projeto Google for Education pouco avançou nas escolas, muito por conta das
dificuldades de infraestrutura tecnológica (serviços de banda larga,
equipamentos, dispositivos móveis de acesso à internet) e de formação de
professores para a integração das TDIC ao currículo. Mesmo assim, a entrada da
Google na educação catarinense se efetivou por meio do uso dos e-mails
institucionais com domínio @sed.sc.gov.br, que hoje utilizam o servidor de
e-mail Gmail.
Pouco mais de quatorze dias de
suspensão das aulas e, ainda sem um prognóstico que avalie possíveis datas de
retorno, a Secretaria de Educação convoca professores para utilização em
caráter de urgência dos recursos oferecidos pelo Google for Education. À
primeira vista, a medida se apresenta como uma ação salvífica para o ano letivo,
considerando a total excepcionalidade do momento que estamos vivendo, a
situação de emergência e a forte adesão da população às medidas de restrição de
circulação. Mas há alguns problemas que merecem alguma atenção.
Primeiro, trata-se de uma medida
apressada. Visa formar professores para o desenvolvimento de atividades “não
presenciais”. Nota-se que o termo utilizado pela SED-SC não é o de Educação à
distância (EAD). Isto porque para que receba essa nomenclatura deve-se seguir o
marco regulatório do Ministério da Educação (MEC). Uma formação feita às
pressas e sem levar em conta o caráter de gestão democrática da educação
brasileira, convocando a categoria a discutir a situação, tenderá a gerar um
problema a mais para a educação. Se pensarmos que muitos professores não
atualizam suas leituras acerca de conteúdos que tangenciam seu trabalho, dada a
precarização da carreira docente, carregarão agora outra carência: a de ordem
tecnológica. A obsolescência migra do espaço da sala de aula física para a sala
virtual, ou melhor dizendo, para a classroom.
O efeito que podemos perceber dessa
“tarefa hercúlea” (como mencionado na videoconferência entre SED-SC e
coordenadores das regionais), é o esvaziamento conceitual revelado pela ausência
de uma discussão mais aprofundada sobre currículo, para além de uma preocupação
instrumental de cumprimento de calendário/componentes curriculares. Pouco, ou
quase nada se comentou sobre a organização curricular, o modelo escolar
vigente, sobre a forma de abordar os conteúdos escolares, a organização escolar
em ambientes virtuais e a concepção de educação que se pretende com tais
medidas.
A crise provocada pelo Covid-19
convoca-nos a pensar em como lidar com o ensino diante da contingência do
calendário, do ensino e da saúde. É possível comparar medidas assim com o
remédio que se toma para a cefaleia, sem tentar entender o que causa a dor. As
escolas irão ministrar o remédio que antes era presencial para uma administração
virtual? Diante desta possibilidade, vale lembrar do conceito de Pharmacon, quando
o mesmo remédio pode ser um veneno.
A formação de professores para uso
dos recursos da Google vem se apresentando igualmente vazia de concepções
conceituais sobre tecnologia. Apresentadas como ferramentas neutras e
inevitáveis, pouco ou quase nada foi abordado sobre quais os valores carregam
tais ferramentas, quais tecnologias e quais recursos educacionais digitais são
capazes de promover a aprendizagem dos estudantes. Assume-se a formação
instrumental e em caráter de neutralidade, isto é, ensinar aos professores a
operação da plataforma (operários treinados para apertar os botões e produzir
em massa), como modo de promover a capacidade de se transpor as atividades de
ensino-aprendizagem realizadas presencialmente, para salas e aulas virtuais. Sabe-se
que a aquisição instrumental para manejo dos recursos tecnológicos é uma etapa
importante, mas corre-se o risco de que a tarefa onerosa para as contas
públicas possa desmoronar diante e pelo modelo escolar vigente. O peso de tal
queda não deverá ser colocado sobre as espaldas dos sujeitos da educação,
responsabilizando-os pelas dificuldades que surgirão.
Outro problema que se evidencia é a
completa ausência de tópicos que esclarecessem os professores sobre os termos
de uso de dados de professores e estudantes. Apesar da Google permitir o acesso
gratuito aos seus produtos, sabemos que uma das formas de lucratividade da
empresa vem da propaganda assertiva e sugestiva, oriunda da coleta e análise de
grandes quantidades de dados (o Big Data), que permitem a predição de
diferentes cenários criados para conduzirem as condutas de consumo. As empresas
entram com as plataformas e nós entramos com nossos dados. Cada clique e cada
palavra informada em seus produtos são analisados em larga escala e são
oferecidos a seus anunciantes. De alguma maneira nossas informações, nosso modo
de vida e forma de trabalho passa a compor os ‘ativos’ da empresa.
A questão a se refletir é, vale a
pena entregar os dados de aprendizagem dos estudantes? Não se trata tanto de nos
preocuparmos com os dados dos indivíduos. Ainda que devamos pensar na
relevância, para quem tem o poder, de saber nossas preferências individuais,
nossas capacidades em produzir aprendizagem, nossas competências tecnológicas,
e através desses dados sermos responsabilizados pelo sucesso ou insucesso de
nossos alunos. Há no regime de segurança dos aplicativos um sistema de
monitoramento das contas e dos acessos, autorizado pela aceitação dos termos de
uso das contas Google, que anunciam nossa permissão de acesso ao conteúdo da
conta pelo administrador local.
No momento, nessa condição de acesso
em massa, seria importante pensarmos mais sobre o quanto vale as informações (monetização
de dados) quando analisadas num conjunto populacional. Por exemplo,
entregaremos a uma corporação internacional os dados de aprendizagem em
matemática de 5 mil estudantes de 12 anos, seus cliques na web, o tempo de
acesso, a geolocalização, hábitos culturais e etc. Isso se converte em
informações extremamente importantes e que podem ter vários desdobramentos e
implicações na carreira docente.
O isolamento tem se mostrado um
momento favorável ao enfrentamento de um problema que, até aqui, apresentou
grande complexidade para chegar à solução. O acesso de qualidade à internet é,
melhor dizendo, um atalho que permanece mal sinalizado há pelo menos duas
décadas no Brasil. Ainda que as escolas possuam acesso à internet, ainda faltam
condições de infraestrutura tecnológica que permita o acesso simultâneo de
todos os estudantes e professores. Com o isolamento, as empresas e a Secretaria
de Estado da Educação está utilizando a infraestrutura de uso pessoal dos
professores, paga com o salário dos professores e das famílias dos estudantes.
Ainda podemos trazer à tona o problema de acesso daquelas famílias que não
possuem condições financeiras para oferecer acesso a seus filhos (energia
elétrica, internet e dispositivos de qualidade). Não estariam assim os
professores arcando com uma despesa que é de fato e direito do Estado? As
tecnologias digitais, do modo como estão sendo implantadas, seriam meios de
privatização da educação pública?
Por fim, a emergência de uma
pandemia está se revelando um momento de naturalização de medidas de exceção.
Sabemos que o isolamento social é a única forma que temos para enfrentar esta
crise de saúde humanitária. Mas, ao invés de agirmos com prudência e
consciência comunitária, estamos aceitando medidas educacionais anunciadas verticalmente.
Estamos abrindo mão de discutirmos qual escola temos e qual escola queremos.
Estamos deixando de lado a possibilidade de pensarmos e propormos juntos uma
formação realmente humana, crítica e socialmente referenciada. Estamos perdendo
a oportunidade de discutirmos quais as consequências do modo de produção que
vigora no planeta.
Estamos apressados, e nos apressando
em aprender a apertar botões para transferir conteúdos a nossos estudantes sem
sabermos se isso garantirá a aprendizagem. Corremos o risco de abrirmos mão da
educação como um dever do Estado e um direito de todos. A educação sem estas
ponderações passa a seguir a lógica da nuvem na qual as palavras perdem seus
vínculos simbólicos, passando a fazer parte de um aranzel sem contexto, muito
semelhante a mercadoria. A educação moldada com palavras e conteúdos pescados
nas nuvens, cujos sujeitos produtores ou reprodutores não pensam nos possíveis
contextos, não produzirá experiência.
[1]
Educador Musical. Professor no CED-UFSC. Mestre em Educação e Doutorando no
PPGE-UFSC. Membro do grupo de pesquisa REPERCUTE: redes, pesquisa, currículo e
tecnologia.
[2]
Professor da Educação Básica de Língua Portuguesa e Literatura. Mestre em
Teoria Literária. Doutor em Literatura Brasileira pela UFSC.